Peregrinos da Esperança
A natureza excepcional dos acontecimentos dos últimos anos afetou profundamente os homens e as mulheres do nosso tempo. Depois de décadas de sucessivas crises sociais, políticas e econômicas, a pandemia causou alguns transtornos imprevistos e ajudou a mudar diversos paradigmas. Mas também deixou para trás muitas famílias em luto e em sofrimento e provocou novas angústias. As duas guerras que se seguiram, na Ucrânia e na Palestina, deixaram um rastro de lágrimas sobre os escombros em ruínas, violência e, acima de tudo, milhares de mortos e feridos. Como bem escreveu André Riccardi: “A guerra é a mãe de todas as pobrezas” 1. Também é verdade que essas situações dramáticas nos deram a oportunidade de testemunhar muitos atos heroicos de dedicação e sacrifício. Entre eles estavam as pessoas dos serviços de resgate e da saúde, os voluntários das ONGs e outros, que trabalharam até a exaustão para ajudar as vítimas dessas diferentes situações. No atual contexto de “perigoso conflito global em pedaços”, o Papa Francisco está constantemente encorajando os chefes de Estado e de governo a “construir em conjunto a civilização do encontro”. O tema do Sínodo sobre a sinodalidade contribuiu para isso, pedindo uma colaboração plural e unificada, em contraste com “as tentações da autorreferencialidade individualista e a afirmação ideológica do próprio ponto de vista, que alimentam a incivilidade do confronto” 2.
Chamados a olhar para além de nós mesmos
Essas observações a nível mundial e eclesial nos remetem para nós mesmos. Mas elas também não nos dão um gostinho de impotência, frustração e inadequação a nível pessoal e até comunitário? E, ao mesmo tempo, não existe no coração de todo ser humano um profundo anseio, uma sede vital e silenciosa por “algo mais”, por “outra coisa”? Em poucas palavras, não fomos todos criados com essa sede natural indescritível que nos permite ter Esperança? Entretanto, se cada um de nós é formado por essa aspiração à esperança, a esperança é uma realidade que vai muito além de nosso coração humano. A esperança é um dom, uma virtude teológica! As virtudes teológicas são a Fé, a Esperança e a Caridade. Elas são infundidas por Deus nas almas dos fiéis no Sacramento do Batismo, para torná-los capazes de agir como seus filhos e entrar na vida eterna. Elas estão unidas, como uma aliança, às faculdades do ser humano e são o sinal, nele, da presença do Espírito Santo. A graça da Esperança supera, transcende e arrasta, como uma torrente, todas as pequenas esperanças humanas, as previsões naturais, todo o otimismo imaginário, o “tudo vai dar certo”, todo o positivismo e todo o rearmamento moral sensível e humano. Sem a verdadeira virtude da Esperança, a vida ainda não é realmente vida.
Os últimos pastores da Igreja sempre nos convidaram a acolher a Esperança
Os dois últimos papas anunciaram com veemência à Igreja e ao mundo contemporâneo a grande importância de acolher o dom da Esperança: Papa Bento XVI: “A redenção é oferecida a nós non sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho” 3. Papa Francisco: “A oração é a primeira força da esperança. Reza-se e a esperança cresce, aumenta. Diria que a oração abre a porta à esperança. Há esperança, mas com a minha prece abro a porta” 4. As reflexões mensais deste Compêndio 2025 são dedicadas ao tema da Esperança, que é o tema deste Ano Jubilar. Com a ajuda de nossos pastores, teremos a oportunidade de meditar sobre as palavras que são consideradas estrelas brilhantes na noite deste mundo. Não vamos nos esquecer dos principais motivos deste Ano Jubilar de 2025, que será celebrado na Igreja do mundo todo:
– O 2025º aniversário do Jubileu da Encarnação do Verbo de Deus: Jesus Cristo Nosso Senhor,
– O 1700º aniversário do Concílio de Niceia (325- 2025), que nos deu o grande Credo de nossa fé cristã,
– O 800º aniversário do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis (1225-2025), um ano antes de sua morte.
Esse ano jubilar – como ocorre em todos eles – é um momento excepcional de conversão, penitência e perdão para todos os peregrinos. Em 2024, as estatísticas elaboradas a pedido do Vaticano previram que haveria cerca de trinta milhões de peregrinos em Roma no Ano Jubilar de 2025. O primeiro grande evento jubilar ocorreu na véspera de Natal, 24 de dezembro de 2024: o Papa abriu a Porta Santa da Basílica de São Pedro. No domingo, 29 de dezembro de 2024, o Papa Francisco estabeleceu a abertura da Porta Santa da Catedral de São João de Latrão, bem como a abertura das Portas Santas nas catedrais e dioceses de todo o mundo. A mesma abertura também ocorreu no dia 1º de janeiro de 2025 na Porta Santa da Basílica Papal de Santa Maria Maior e no dia 5 de janeiro de 2025 na Basílica Papal de São Paulo Fora dos Muros. E o Ano Santo se encerrará no dia 28 de dezembro de 2025 em todas as mesmas catedrais e dioceses. A Porta Santa na Basílica Papal de São Pedro, em Roma, será fechada no dia 6 de janeiro de 2026, a Festa da Epifania do Senhor. Essa experiência de “passar pela Porta Santa” dá a cada peregrino a possibilidade de um ato de fé (para si mesmo, mas também para os outros, como um ato de intercessão), vivendo-a como uma passagem em direção a Jesus, que disse ser Ele mesmo “A Porta”: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (Jo 10, 9). Esse Ano Santo de 2025 abrirá o caminho para outro Ano Santo: o dos dois mil anos da Redenção do Senhor, que será celebrado em 2033.
A oração é a primeira força de Esperança
Para São Tomás de Aquino, a oração é: “O intérprete da esperança” (…) “O Senhor nos ensinou a esperança ensinando-nos a rezar (…) O Pai Nosso é a escola da esperança, seu aprendizado concreto” 5. O percurso espiritual que fizemos em 2024, sobre o tema da oração, preparou-nos para entrar nessa grande graça da Esperança. A oração é de fato “a porta da Fé”, assim como também é “a porta da Esperança”. Como disse o Papa Francisco em 2020: “Os homens e as mulheres que oram sabem que a esperança é mais forte do que o desânimo. Acreditam que o amor é mais poderoso do que a morte, e que certamente um dia há de triunfar, nem que seja em tempos e modalidades que não conhecemos. Os homens e as mulheres de oração trazem clarões de luz refletidos no rosto, pois até nos dias mais escuros o sol não deixa de os iluminar. A oração ilumina-te: ilumina a tua alma, ilumina o teu coração e ilumina o teu rosto. Até nos momentos mais sombrios, mesmo nos momentos de maior dor.” 6
Neste último ano, dedicado à oração em preparação para o Ano Jubilar de 2025, pudemos redescobrir o dom inigualável de poder dialogar pessoalmente com o Senhor, de coração a coração, bem como a alegria de compartilhar esse dom com nossos irmãos e irmãs na fé. Junto com eles, nos tornaremos peregrinos da esperança, porque “a oração é a primeira força da esperança”. A Grande e Firme Esperança nos comunica uma extraordinária qualidade de vida, na certeza de que Deus está caminhando conosco, acompanhando-nos, sem nos tornar mais merecedores. E essa certeza nos estabelece em uma grande confiança no futuro vivido no Senhor. A referência fundamental deste compêndio é, em primeiro lugar, as Escrituras Sagradas, seguidas pela Encíclica do Papa Bento XVI Spe Salvi, “na esperança somos salvos” (Rm 8, 24). “Primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração. Quando já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com ninguém, nem invocar mais ninguém, a Deus sempre posso falar. Se não há mais ninguém que me possa ajudar – por tratar se de uma necessidade ou de uma expectativa que supera a capacidade humana de esperar – Ele pode ajudar-me. Se me encontro confinado numa extrema solidão… o orante jamais está totalmente só.” 7
De fato, não nos esqueçamos do lugar da oração em todos os passos e decisões que tomarmos durante este Ano Jubilar. Vejamos o exemplo de um camponês russo do século XIX que, tendo perdido a esposa, a casa e o trabalho, entrou em uma igreja e ouviu o apelo do Apóstolo Paulo aos Tessalonicenses para “orar sem cessar” (cf. 1Ts 5, 17). O pobre homem tornouse um peregrino e partiu em viagem por todo o país, praticando a “Oração do Coração” 8.
Peregrinos da Esperança
Mas por que “peregrinos da esperança”? Assim como Cristo na Cruz abraçou misericordiosamente o mundo e cada um de seus filhos em Seus braços abertos. Da mesma forma, os “braços” das colunatas de São Pedro em Roma darão as boas-vindas e abraçarão todos os peregrinos do mundo inteiro neste Ano Jubilar. Esses braços do “Pai de toda misericórdia e consolação” são os braços da Esperança Cristã, a esperança que nunca pode nos fazer considerar algo ou alguém como definitivamente perdido ou fracassado. São Lucas, o evangelista e médico, expressou muito bem o desejo que ardia no coração dos peregrinos da Esperança: “Não ardia o nosso coração quando Ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32). Os peregrinos estão sempre em movimento, sedentos de algo que vá além da mediocridade.
Eles vão de começo em começo, de progresso em progresso, até que o amor converta seus desejos em Esperança. Mas o que significa ser “peregrino” hoje, pergunta o Papa Francisco, preparando-nos para receber sua resposta:
“Quem empreende uma peregrinação procura, antes de mais nada, ter clara a meta, e conserva-a sempre no coração e na mente. Mas, para atingir esse destino, é preciso ao mesmo tempo concentrar-se no passo presente: para o realizar, é necessário estar leve, despojar-se dos pesos inúteis, levar consigo apenas o essencial e esforçar-se cada dia por que o cansaço, o medo, a incerteza e a escuridão não bloqueiem o caminho iniciado. Por isso ser peregrino significa partir todos os dias, recomeçar sempre, reencontrar o entusiasmo e a força de percorrer as várias etapas do percurso que, apesar das fadigas e dificuldades, sempre abrem diante de nós novos horizontes e panoramas desconhecidos.” 9
Deus é a Verdadeira e Grande Esperança
As “pequenas esperanças” são certamente necessárias porque, como escreveu o Papa Bento XVI, elas “nos mantêm no caminho” 10 . Mas essas esperanças não são suficientes para nós, porque somos feitos para Deus, que é a nossa única Grande Esperança. Por isso, pode ser chamada de “Grande Esperança”, a esperança que resiste a toda desilusão e a toda a nossa “obsolescência” humana e terrena, que é sempre
limitada. Ela só pode ser o Dom de Deus, Naquele que veio “para que as ovelhas tenham vida e a tenham em abundância” (cf. Jo 10, 10). Somente com nossas possibilidades naturais, e sem a ajuda salvadora da graça de Cristo, não podemos alcançar essa grande Esperança. “A vida, no verdadeiro sentido, não a possui cada um em si próprio sozinho, nem mesmo por si só: aquela é uma relação. E a vida na sua totalidade é relação com Aquele que é a fonte da vida. Se estivermos em relação com Aquele que não morre, que é a própria Vida e o próprio Amor, então estamos na vida. Então ‘vivemos’.” 11 Pois, como observou o Papa Bento XVI, as pessoas hoje – e de sempre- “necessita do amor incondicionado”. Precisa daquela certeza que o faz exclamar: ‘Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor’ (Rm 8, 38-39)” 12. Peçamos ao Senhor essa virtude estável e permanente da Esperança, da qual a nossa geração tanto precisa. Que a Virgem Maria, Estrela da Esperança, nos acompanhe todos os dias deste novo Ano Jubilar.
O Cântico das Criaturas, do Irmão Francisco
Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a bênção
Só a Ti Altíssimo, são devidos;
e homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as Tuas criaturas,
Especialmente o Senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor.
De Ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às Tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.
DIÁC. GEORGES BONNEVAL
28
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão fogo.
Pelo qual iluminas a noite.
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas fl ores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por Teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem aventurados os que sustentam a Paz,
Que por Ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à Tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-Lhe graças,
E servi-O com grande humildade.
Diácono Georges Bonneval
Fundador da Comunidade Sementes do Verbo
FONTES:
1 Cf. Andrea Riccardi, Il ne peut y avoir de fraternité entre les hommes s’il y a la
guerre (Não pode haver fraternidade entre os homens se existe a guerra),
entrevista dada em Assis, 4 de outubro de 2020.
2 Cf. Papa Francisco, Reunião com os membros do Pontifício
Comitê para as Ciências Históricas, 20 de abril de 2024.
3 Papa Bento XVI, Encíclica Spe Salvi, n. 1.
4 Papa Francisco, Audiência Geral, 20 de maio de 2020.
5 Cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II 17, 2.
6 Papa Francisco, Audiência Geral, 20 de maio de 2020.
7 Papa Bento XVI, Spe Salvi, n. 32.
8 Cf. Relatos de um Peregrino Russo, escrito por um autor anônimo no
final do século XIX.
9 Papa Francisco, Mensagem para o 61ª Dia Mundial de Oração pelas
Vocações, 21 de abril de 2024.
10 Papa Bento XVI, Spe Salvi, n. 31.
11 Papa Bento XVI, Spe Salvi, n. 27.
12 Ibidem, n. 26.