Quando lemos os relatos dos encontros dos apóstolos e discípulos com o Cristo Ressuscitado, constatamos de maneira inequívoca como esse
encontro transformou a vida de cada um deles, mesmo se eles já tinham seguido o Mestre durante os últimos três anos. Mas se olharmos mais de perto, nem tudo foi tão simples ou tão automático. Tomé estava ausente no dia em que Jesus apareceu aos apóstolos reunidos (cf. Jo 20, 24) e Jesus teve que voltar “oito dias depois” (Jo 20, 26) para encontrá-lo; Maria Madalena viu o Senhor Ressuscitado, mas em sua visão de fé, ainda obscurecida pela dor, o confundiu com o jardineiro. Precisou ouvir a voz Dele chamando-a de “Maria” (Jo 20, 16) para que a energia da Ressurreição do Senhor tivesse um efeito imediato sobre ela.
Pois ninguém, em sua vida sofrida, jamais a havia chamado assim: “Maria!”. Jesus era o único que sabia como amá-la verdadeiramente, como respeitá-la, como conhecê-la como Deus conhece cada um de seus filhos. Esse momento de chamado para ela, assim como para cada um dos apóstolos, marcou o “ponto de virada”. Em outras palavras, o início de uma nova criação e de uma nova história.
“Mesmo se conhecemos Cristo segundo a carne, agora já não O conhecemos assim. Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova. Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo.” (2Cor 5, 16-18)
Qual é esse ponto sem retorno em minha vida? O que marca um divisor de águas em minha história, tornando-a um antes e um depois? É o nosso encontro com o Cristo Vivo, não como uma personagem histórica do passado, mas como o Filho de Deus, mais presente para mim do que eu mesmo, “meu Senhor e Salvador!”. Um encontro, “a escolha fundamental de nossa vida”, que marca para sempre a nossa história humana, como o Papa Bento XVI descreveu tão bem nas palavras iniciais de sua primeira encíclica “Deus Caritas Est”: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.” 1
Qualquer pessoa que leia as reflexões mensais deste compêndio deve se fazer esta pergunta diante de Deus e de sua própria consciência: quando foi que encontrei o Cristo Vivo pela primeira vez?
Deus estava lá e eu não sabia
Lembre-se daquele momento inaugural em que, como o patriarca Jacó, você disse:
“Jacó acordou de seu sonho e disse: ‘Na verdade, o Senhor está neste lugar e eu não o sabia!’ Teve medo e disse: ‘Este lugar é terrível! Não é nada menos que uma casa de Deus e a porta do céu!’” (Gn 28, 16-17)
E se você nunca teve esse encontro pessoal, nunca é tarde demais para querer fazê-lo e decidir fazê-lo, especialmente quando você fecha a porta do seu quarto e se ajoelha, fazendo esta breve oração, com a fé e a esperança do seu coração de criança: “Senhor, Tu estás Vivo, eu acredito na Tua Santa Ressurreição, mas revela-te a mim, eu quero conhecer-Te diretamente, reconhecer-Te na minha vida cotidiana e amar-Te como Tu esperas que eu o faça”.
O dom da fé já foi dado em seu batismo, mas essa fonte precisa ser desbloqueada, liberada em seu coração de tudo o que se opôs a ela e a impediu de ser e de jorrar “como um rio de águas vivas” (Jo 7, 38). Simplesmente permita que essa fé se torne uma relação, um encontro vivo, uma efusão com o seu Senhor e o seu Deus. O Papa Bento XVI disse algumas palavras muito precisas e fortes para os jovens estudantes de inglês, convidando-os a fazer essa escolha fundamental em suas vidas: “A solução é muito simples: a verdadeira felicidade
deve ser procurada em Deus. Temos necessidade da coragem de depositar as nossas esperanças mais profundas unicamente em Deus: não no dinheiro, numa carreira, no sucesso mundano ou nos nossos relacionamentos com os outros, mas em Deus. Só Ele pode satisfazer a necessidade mais profunda do nosso coração! Deus ama-nos com uma profundidade e intensidade que dificilmente podemos imaginar, e
também nos convida a responder a este amor.” 2
Não adie o encontro, esse encontro que Jó fez, esse grande homem de Deus da Primeira Aliança: “Conhecia-te só de ouvido, mas agora viram-te meus olhos” (Jó 42, 5). E se você, que está lendo este Compêndio, já teve esse encontro inaugural com o seu Senhor e Salvador, volte para Ele, se tiver se afastado ou relaxado na fé e na esperança. Lembre-se do “primeiro amor” (Ap 2, 4), como o apóstolo Paulo exortou no final de sua vida, escrevendo para o seu filho espiritual Timóteo: “eu te exorto a reavivar o dom de Deus que há em ti pela imposição das minhas mãos” (2Tm 1, 6). O dom de Deus já está em seu coração, não duvide disso, ele lhe foi dado para sempre porque “Deus nunca se arrepende de Seus dons” (cf. Rm 11, 29), mas cabe a você “reacendê-lo”, em outras palavras, soprar nas brasas que gradualmente, com o tempo e as circunstâncias, deixaram-se cobrir de cinzas.
Lembro-me de um santo homem de Deus, um Pastor protestante que, no início de minha (primeira) conversão, colocou-me à prova de maneira justa, para verificar a autenticidade do meu encontro com o Senhor. Ele disse por experiência própria: “Há uma grande diferença entre uma pessoa que foi tocada pela graça e outra que teve um encontro real com o Cristo Vivo!”.
Naquela ocasião, também ouvi outro pregador dizer: “Deus não tem enteados, Ele só tem filhos!”. Isso salienta a importância de uma fé que tenha uma relação direta com o Senhor, e não apenas uma relação com Deus por procuração, com base na fé dos pais ou avós, por exemplo. Como os samaritanos declararam, após a mulher samaritana ter testemunhado que Jesus era o Messias:
“Muitos samaritanos daquela cidade creram Nele, por causa da palavra da mulher que dava testemunho: ‘Ele me disse tudo o que fiz!’ Por isso, os samaritanos vieram até Ele, pedindo-lhe que permanecesse com eles. E Ele ficou ali dois dias. Bem mais numerosos foram os que creram por causa da palavra Dele e diziam à mulher: ‘Já não é por causa do que tu falaste que cremos. Nós próprios o ouvimos, e sabemos que esse é verdadeiramente o salvador do mundo’.” (Jo 4, 39-42)
Jesus Cristo é a nossa Esperança
Ao iniciar a Bula de Proclamação do Jubileu de 2025, o Papa Francisco se dirige a todos os “peregrinos da esperança” com este desejo: “Penso em todos os peregrinos de esperança, que chegarão a Roma para viver o Ano Santo e em quantos, não podendo vir à Cidade dos apóstolos Pedro e Paulo, vão celebrá-lo nas Igrejas particulares. Possa ser, para todos, um momento de encontro vivo e pessoal com o Senhor Jesus, ‘porta’ de salvação (cf. Jo 10, 7.9); com Ele, que a Igreja tem por missão anunciar sempre, em toda a parte e a todos, como sendo a ‘nossa esperança’ (1 Tm 1, 1).” 3
A “via pulchritudinis”, ou “caminho da beleza”, um caminho que nos ajuda a encontrar o Deus Vivo
Esse caminho da Beleza é uma via de evangelização das culturas e de diálogo com outras religiões, bem como com os não crentes, que leva a Cristo “Caminho, Verdade, Vida, Bondade, Beleza”. Ao longo da história do cristianismo, a beleza tem sido um fator poderoso na evangelização e na catequese. Essa busca pela Beleza está enraizada no homem e na humanidade desde a origem dos tempos, como se, desde a queda original, o homem estivesse buscando desesperadamente um mundo de beleza que se tornou fora de seu alcance. Hoje, mais do que nunca, os homens e as mulheres de nossas sociedades estão buscando encontrar a Beleza nas artes, por meio da arquitetura, da música, do teatro, do cinema, da pintura, da escultura, da arte bizantina ao românico, do gótico ao renascentista, do barroco à arte moderna.
Hoje, não seria importante oferecer aos nossos contemporâneos um serviço de beleza, começando, por exemplo, com a preparação de belas liturgias? Como o Cardeal Joseph Ratzinger disse de forma tão brilhante: “Não há dúvida de que a força interna da liturgia desempenhou um papel essencial na difusão do cristianismo. O que chama a atenção é o mistério, o mistério como tal, um mistério que, precisamente
porque está além de qualquer discussão, impõe à razão a força da verdade”. 4
Como São João Paulo II também escreveu, a Beleza é “o esplendor da verdade” 5, então poderíamos dizer: “é o próprio Jesus que é a Beleza”. Ele se manifesta do Tabor à Cruz para iluminar o mistério do homem, desfigurado pelo pecado, mas purificado e recriado pelo Amor redentor. Beleza suprema, esplendor da Verdade, Jesus é a fonte de toda beleza, porque, como Verbo de Deus feito carne, é a manifestação do Pai: “Quem Me viu, viu o Pai” (Jo 14, 9). A Beleza, assim como a Liturgia, é capaz de criar comunhão “porque une Deus, o homem e a criação numa única sinfonia; porque conecta o passado, o presente e o porvir; porque atrai para um único lugar e envolve no mesmo olhar diferentes pessoas e povos distantes” 6.
“Se for autêntico, o artista é capaz de falar de Deus melhor do que ninguém, de fazer com que se perceba a sua beleza e bondade, de ‘chegar ao coração do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do Ressuscitado’. 7” 8 “A beleza salvará o mundo” 9, essa famosa citação do escritor russo F. Dostoiévski (1821-1881), deixa em aberto a escolha de nossa interpretação. Para nós, cristãos, não seria melhor: “Cristo salvará o mundo?”. Pois foi Ele quem foi anunciado como “o mais belo dos filhos dos homens” (Sl 44(45), 3).
No entanto, Ele é o mesmo que foi profetizado por Isaías como aquele que “não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens, um homem sujeito à dor, familiarizado com a enfermidade, como uma pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum Dele” (Is 53, 2-3). A Beleza Divina também é paradoxal e, muitas vezes, está em desacordo com os nossos critérios passageiros de estética e moda. Podemos presumir que Dostoiévski, o crente, entendeu a sua afirmação da beleza “que salva” no amor salvador de Cristo, inseparável de Sua bondade. A figura de Cristo está de fato no centro de sua fé.
Perto do fim de sua vida, ele escreveu uma carta que era uma espécie de testamento espiritual, na qual ele declarou:
“Não há nada mais belo, mais profundo, mais simpático, mais racional, mais corajoso e perfeito do que Cristo. (…) Se alguém provasse que Cristo está fora da verdade e se realmente a verdade estivesse fora de Cristo, eu gostaria mais de ficar com Cristo do que com a verdade.” 10
Este mundo precisa de beleza se não quiser se afundar no desespero
São Paulo VI também demonstrou grande estima pelas artes e pelos artistas, e até se comprometeu a “restabelecer a amizade entre a Igreja e os artistas” 11. Aqui estão apenas algumas de suas intuições que ainda hoje são relevantes: “O nosso ministério é pregar e tornar acessível e
compreensível, aliás comovedor, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E nesta operação vós sois mestres. É a vossa profissão, a vossa missão; e a vossa arte é extrair do céu do espírito os seus tesouros e revesti-los de palavra, de cores, de formas
de acessibilidade.” 12 “E se a nós viesse a faltar o vosso auxílio – prosseguia – o ministério tornar-se-ia balbuciente e incerto e teria necessidade de fazer um esforço, diríamos, por se tornar ele mesmo artístico, aliás por se tornar profético. Para se elevar à força de expressão lírica da beleza intuitiva, teria necessidade de fazer coincidir o sacerdócio com a arte.” 13 “Desde há muito que a Igreja se aliou convosco. Vós tendes edificado e decorado os seus templos, celebrado os seus dogmas, enriquecido a sua Liturgia. Tendes ajudado a Igreja a traduzir a sua divina mensagem na linguagem das formas e das figuras, a tornar perceptível o mundo invisível.” 14
São João Paulo II, ele próprio um artista, escreveu uma bela “Carta aos Artistas”, dirigindo-se a “quantos, com apaixonada dedicação, procuram novas ‘epifanias’ da beleza” 15. O Papa Bento XVI, ao receber uma delegação de artistas na Capela Sistina, disse: “A autêntica beleza abre o coração humano à nostalgia, ao desejo profundo de conhecer, de amar, de ir para o Alto, para o Além de si. Se aceitamos que a beleza nos toque intimamente, nos fira, nos abra os olhos, então redescobrimos a alegria da visão, da capacidade de colher o sentido profundo do nosso existir, o Mistério do qual somos parte e do qual podemos haurir a plenitude, a felicidade, a paixão do compromisso quotidiano.” 16
A esperança, uma âncora segura e firme para a alma
A nossa era atual, muito marcada por guerras e violências e influenciada por ideologias mortais, está testemunhando um enfraquecimento da esperança, com sinais de desconfiança nas instituições e nas relações humanas em geral. Tudo isso favorece e gera resignação, agressividade e desespero, que aumentam. Diante da ascensão de políticas liberais que afirmam o pluralismo, o individualismo e o consumismo no centro dos valores da modernidade, as comunidades cristãs, antigas e novas, têm um trabalho difícil, pois são desafiadas a se concentrar novamente no Deus de Jesus Cristo, que não é o Deus dos vencedores e dos poderosos, mas dos pobres, dos humildes, dos sofredores e dos esquecidos, a quem o Senhor só pode inspirar “esperança na solidariedade”. Foi justamente diante dos desafios do mundo atual que o Papa Francisco dedicou o ano de 2025 ao tema da Esperança:
“‘Encontramos grande estímulo agarrando-nos à esperança proposta. Nessa esperança, temos como que uma âncora segura e firme da alma, que penetra até ao interior do véu, onde Jesus entrou como nosso precursor’ (Hb 6, 18-20).
A imagem da âncora é sugestiva para compreender a estabilidade e a segurança que possuímos no meio das águas agitadas da vida, se nos confiarmos ao Senhor Jesus. As tempestades nunca poderão prevalecer, porque estamos ancorados na esperança da graça, capaz de nos fazer viver em Cristo, superando o pecado, o medo e a morte. Esta esperança, muito maior do que as satisfações quotidianas e as melhorias nas condições de vida, transporta-nos para além das provações e exorta-nos a caminhar sem perder de vista a grandeza da meta a que somos chamados: o Céu.” 17
Fontes:
1 Papa Bento XVI, Carta Encíclica Deus Caritas Est, 25 de dezembro de 2025, n. 1.
2 Papa Bento XVI, Encontro com os Alunos das Escolas Católicas Britânicas, 17 de setembro, Campo desportivo do Saint Mary’s University College, 17 de setembro de 2010.
3 Papa Francisco, Bula de Proclamação do Jubileu 2025, Spes non confundit, 9 de maio de 2024, n.1.
4 Cf. Cardeal Joseph Ratzinger, Eucharistie et mission (Eucaristia e Missão), in Liturgie et Mission, Centre international d’études liturgiques, Paris, 2002.
5 Cf. São João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor, 6 de agosto de 1993.
6 Papa Francisco, Discurso aos Patrons of the Arts, 28 de setembro de 2018.
7 Papa Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 24 de novembro de 2013, n. 167.
8 Idem, Discurso aos Membros da Associação Diaconie de Beauté, 17 de fevereiro de 2022.
9 Cf. Fyodor Dostoiévsky, O idiota, 1869.
10 Cf. Fyodor Dostoiévski, Complete Collected Works (Obras Completas Coletadas), volume 28, Livro 1, 1985, p. 176.
11 São Paulo VI, Insegnamenti II, 314, citado por Bento XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os Artistas, 21 de novembro de 2009.
12 Ibidem, Insegnamenti II, 313.
13 São Paulo VI, Insegnamenti II, 313, citado por Bento XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os Artistas, 21 de novembro de 2009.
14 Idem, Mensagem aos artistas, na Conclusão do Concílio Vaticano II, 8 de dezembro de 1965.
15 São João Paulo II, Carta aos Artistas, 1999, citado por Bento XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os Artistas, 21 de novembro de 2009.
16 Bento XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os Artistas, 21 de novembro de 2009.
17 Papa Francisco, Bula de Proclamação para o Ano Jubilar de 2025, 9 de maio de 2024.