Chama Viva de Amor: a alma cheia de Esperança, sua glória consumada e seu desejo satisfeito
“Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo.” (At 2, 3-4)
No mês passado, entendemos que a vida no Espírito, ou seja, a vida espiritual, não pode ser confundida com uma “vida natural”, ou seja, uma vida influenciada e conduzida principalmente por nossos recursos e hábitos humanos: sensibilidade, intuições e instintos humanos. Além disso, a vida no Espírito não pode ser uma “fusão” indistinta entre o humano e o divino; ela só pode ser uma “aliança” entre o dom divino e o nosso próprio espírito racional. Essa aliança, que acontece na alma, não pode ocorrer sem reações, lutas e renúncias por parte da nossa carne. É nesse sentido que São João da Cruz usa a metáfora do fogo do Espírito Santo que inflama a madeira, a alma, até que os dois se tornem um só fogo incandescente. Diversas declarações feitas pelo Apóstolo Paulo em suas Cartas apontam para a vida no Espírito, que é necessariamente distinta da vida natural, a dos sentidos, dos poderes e instintos humanos. Aqui estão algumas das afirmações de São Paulo:
“O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus.” (Rm 8, 16)
“O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente.” (1Cor 2, 14)
“Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim.” (Gl 2, 20)
“Embora vivamos na carne, não militamos segundo a carne.” (2Cor 10, 3)
Vimos anteriormente, no mês de junho, as etapas sucessivas da alma, sob o fogo do amor de Deus, que é o Espírito Santo, seguindo estes sete parágrafos:
– O Espírito Santo é um fogo que inflama a alma.
– A alma unida ao Espírito Santo é transformada, possuída e embelezada.
– Os atos de amor dessa alma são muito preciosos
– Deus fala às almas que são purificadas e límpidas.
– Os efeitos do fogo do Espírito Santo na alma.
– Os sentidos e o demônio não podem chegar na substância da alma.
– O centro da alma pertence a Deus.
Continuamos a nossa leitura e meditação sobre a estrofe I do poema de São João da Cruz: Chama Viva de Amor.
I – 1ª estrofe:
Oh! chama de amor viva
Que ternamente feres
De minha alma no mais profundo centro!
Pois não és mais esquiva,
Acaba já, se queres, Ah! rompe a tela deste doce encontro.
Quando as potências da alma estão bem purificadas
“Por estar já bem purificada em sua substância e potências, memória, entendimento e vontade, então a substância divina que todas as coisas alcança por sua pureza, como diz o Sábio (cf. Sb 7, 24), com sua divina chama muito profunda, sutil e elevadamente absorve a alma em si; e nesta absorção da alma pela Sabedoria, o Espírito Santo exercita as vibrações gloriosas de Sua chama.” 1
São João da Cruz especifica a necessidade de purificações para a alma: “em sua substância e em suas potências, memória, entendimento e vontade”. É então que a chama do amor do Espírito Santo alcança todas as partes da alma e a “absorve”, diz ele, como se fosse “absorvida pela Sabedoria”.
Antes, essa alma não era tão amável nem doce como é agora
“Querendo dizer: pois agora não me afliges mais, nem apertas, nem fatigas como outrora fazias. De fato, convém saber que esta chama de Deus, quando a alma se achava em estado de purificação espiritual, isto é, quando começava a entrar na contemplação, não lhe era tão amiga e suave como agora neste estado de união.” 2
São João da Cruz observa que, antes de passar pela purificação, ou seja, antes de entrar na contemplação da união, essa alma “se afligia, se apertava”, hoje diríamos “se estressava”, se atormentava, “não era tão amiga e suave” como ela se tornou por meio da purificação do fogo do Espírito.
É o mesmo fogo do amor que glorifica, fere e purifica a alma
“Notemos bem como este fogo de amor, que na união glorificará a alma, é o mesmo que investe primeiramente sobre ela purificando-a. Age de modo análogo ao fogo material sobre a madeira: em primeiro lugar, a investe e fere com a sua chama, secando e consumindo os elementos que lhe são contrários, e assim vai dispondo a madeira, com o seu calor, a fim de penetrar mais profundamente nela e transformá-la em fogo.” 3 “A isto, os espirituais dão o nome de via purgativa. Em tal exercício a alma padece muito detrimento, e sente graves penas noespírito, as quais ordinariamente vêm a repercutir no sentido, pois esta chama de amor lhe é ainda muito esquiva.” 4
São João da Cruz também descreveu esse episódio do “caminho purgativo” na “Subida ao Monte Carmelo”, tal como em “A Noite Escura”. Essas são as “purificações passivas dos sentidos” e as “purificações passivas do espírito”. Esses dois episódios de purificação são necessários para a alma e são vivenciados em diferentes momentos da vida, por meio das provações e circunstâncias pelas quais passa, para que a alma cresça em liberdade interior, pureza e santificação.
Posteriormente, “esse mesmo fogo de amor se unirá à alma, glorificando-a”, gratificando-a com dons, talentos e inspirações. Isso corresponderá à etapa da iluminação, que claramente será mais positiva e gratificante. Mas, por enquanto, no caminho da purificação, esse fogo faz com que a alma sinta “certos danos e dores fortes no espírito (que geralmente se refletem nos sentidos), ao sentir essa chama muito rigorosa”. Essa mesma chama de amor é então experimentada como “muito rigorosa”. Isso explica porque muitos podem ser tentados a rejeitar esse trabalho de purificação interior que está ocorrendo providencialmente. E podem ser levados à tentação de acreditar que esse trabalho de purificação do fogo deve ser rejeitado, atribuindo-o ao demônio!
“De fato, quando a alma se acha no estado de purificação a chama não brilha, antes causa obscuridade; ou se alguma luz proporciona, é somente para a alma ver e sentir as suas misérias e defeitos. Também não lhe é suave, mas, ao contrário, é penosa; porque se algumas vezes ateia na alma calor de amor, é com tormento e angústia. Assim, não lhe traz deleite, antes lhe causa secura; embora, às vezes, por sua benignidade lhe conceda gosto, para esforçá-la e animá-la, todavia, antes e depois que isto acontece, costuma contrabalançar e pagar com outro tanto de trabalho. Deus põe fogo em seus ossos, conforme diz Jeremias (cf. Lm 1, 13), a fim de ensiná-la, examinando-a
no fogo, segundo afirma também Davi (cf. Sl 16, 3).” 5
A “opacidade” e a “dificuldade” citadas por São João da Cruz não vêm do demônio ou de Deus, mas das impurezas contidas na alma, que o fogo do amor purifica e liberta, se a alma assim o desejar. As almas que vivem estas etapas de purificação precisam realmente ser bem acompanhadas, para que possam reconhecer como o Espírito de Deus age como um fogo purificador de amor, em meio ao torpor dessas noites “escuras” e “dolorosas”
Purificação passiva das potências da alma
“Eis por que durante todo este tempo a alma padece profundas trevas, no entendimento; na vontade experimenta grandes securas e angústias; na memória sofre amarga lembrança de suas misérias; assim lhe acontece por ter então o olhar espiritual muito esclarecido nessa luz do conhecimento próprio. Na substância interior (no íntimo de si mesma) sofre desamparo e suma pobreza sentindo-se ora fria e seca, ora fervorosa, sem, contudo, achar alívio em coisa alguma. Nenhum pensamento lhe dá consolo; nem mesmo pode levantar o coração a Deus.” 6
Devemos prestar muita atenção aos detalhes fornecidos por São João da Cruz sobre o que a alma está passando: sob a mão e a permissão de Deus, a fim de embelezar e fazer renascer essa alma sob a ação do fogo purificador do Amor. Como veremos mais adiante, São João da Cruz
descreverá com grande sutileza o que cada uma das faculdades – inteligência, vontade e memória – está experimentando de maneira particular nessa jornada purificadora.
“Mostra-se tão esquiva essa chama de amor que a alma pode repetir a palavra de Jó quando era exercitado por Deus em semelhante provação: ‘Tu te trocaste em cruel para comigo’ (Jó 30, 21). Com efeito, ao sofrer todas estas coisas juntas, tem a alma a impressão de que Deus verdadeiramente se tornou cruel e irritado contra ela.” 7
O purgatório das purificações passivas
“Não se pode encarecer o sofrimento da alma neste tempo; é, por assim dizer, pouco menos do que um purgatório. Por mim, não saberia agora dar a entender qual seja a intensidade desta esquivança, nem até onde chega a pena e o sentimento que produz na alma a não ser com as palavras de Jeremias a este propósito: ‘Homem sou eu que vejo a minha pobreza debaixo da vara da sua indignação. Conduziu-me e levou-me às trevas, e não à luz. Não fez senão virar e revirar contra mim a sua mão todo o dia. Fez envelhecer a minha pele, e a minha carne, quebrantou os meus ossos. Edificou ao redor de mim, e me cercou de fel e de trabalho. Pôs-me em lugares tenebrosos, como os que estão mortos para sempre. Edificou em torno de mim, para que eu não saia; agravou os meus grilhões. E ainda quando eu clamar e rogar, ele exclui minha oração. Fechou os meus caminhos com pedras de silharia, subverteu as minhas veredas’ (cf. Lm 3, 1-9).” 8
Para a pessoa que está passando por esse “purgatório”, a dificuldade será sempre chegar a reconhecer Deus que age dessa forma com a alma que Ele supostamente ama! É por isso que o seu acompanhador espiritual deve ser bem inspirado pelo Espírito do Senhor, a fim de estabelecer um discernimento justo.
“É aqui que Tobias põe o coração sobre as brasas, a fim de que dele seja extirpada e expelida toda casta de demônios (cf. Tb 6, 8). Deste modo, vão agora saindo à luz todas as enfermidades da alma, postas assim com grande sentimento diante de seus olhos.” 9
Como não pensar na imagem bíblica do “ouro purificado no crisol”? Essa imagem, citada várias vezes (cf. Is 48, 10; Jr 9, 7; Sl 66, 10, etc.), se aplica à alma purificada pelo fogo do amor de Deus.
Como o fogo faz sair a umidade da madeira
“As fraquezas e misérias que a alma tinha antes em si, inveteradas e ocultas, – as quais até então não percebia nem sentia – agora, com a luz e calor do fogo divino, as vê e sente. Assim como não se conhece a umidade da madeira enquanto o fogo não a faz ressumar, crepitar e fumegar; do mesmo modo sucede à alma imperfeita em relação a esta chama.” 10 A alma agora vê e sente “as fraquezas e misérias
secretas e escondidas”, como a madeira que “transpira”, “fumega” e “crepita” sob a ação do fogo.
As virtudes e propriedades de Deus opostas aos hábitos e propriedades do sujeito
“De fato, oh! maravilha! – levantam-se dentro da alma, a este tempo, contrários contra contrários; os da alma contra os de Deus que investem sobre ela; e, como dizem os filósofos, querem prevalecer uns sobre os outros, entrando em guerra dentro da alma, estes querendo expelir aqueles, a fim de reinarem sobre ela. Em uma palavra, as virtudes e propriedades de Deus, que são extremamente perfeitas, combatem contra os hábitos e propriedades extremamente imperfeitas (…) a essa luz sobrenatural que ela não percebe pelo fato de não a possuir em si como possui as suas próprias trevas; e as trevas não compreendem a luz (cf. Jo 1, 5).” 11 São os “opostos” irreconciliáveis da alma que finalmente entram em guerra.
“A irradiação de uma intensa luz na vista fraca e doente deixará esta inteiramente em trevas, ficando a potência visual vencida pelo intenso excitante sensível. Eis por que esta chama era esquiva ao olho do entendimento.” 12 A força da luz do fogo do amor de Deus, do Espírito Santo, parecia à alma como a luz do sol ao meio-dia, uma visão impossível de sustentar com os olhos naturais. É por isso que essa chama, embora vinda de Deus, parecia à alma uma agressão “cruel”.
A chama envolve amorosamente a vontade
“Sendo esta chama em si extremamente amorosa, fere a vontade com ternura e amor; mas como a vontade em si é extremamente seca e dura, e o que é duro se sente por contraste com o que é suave, e a secura por contraste ao amor, quando tal chama investe assim com ternura e amor sobre a vontade, esta sente a sua própria e natural dureza e secura para com Deus.” 13 “Desta maneira a vontade sofre angústia e fastio com esta amplíssima e saborosíssima chama, sem lhe sentir o gosto, porque não a experimenta em si mesma: na verdade só sente o que tem em si, e é a sua miséria.” 14
Depois de sair da etapa de purificação, a alma perceberá mais claramente, após o fato, os benefícios do fogo do amor divino, mas durante a purificação, ela só sente “o que tem em si mesma”, ou seja, “a sua miséria”.
Isso é o que acontece com os cristãos que primeiro foram agraciados com grandes graças e depois, numa segunda etapa, tomaram consciência de seus próprios defeitos, misérias e limitações. Eles são tentados a pensar: “Antes, eu era muito melhor!” Eles acabam preferindo a cegueira às iluminações da consciência de si mesmos adquiridas pelo trabalho do fogo do Espírito de Deus! “Esta purificação em poucas almas é assim tão forte; só mesmo naquelas que o Senhor quer elevar ao mais alto grau de união. A cada uma, com efeito, Ele purifica mais ou menos intensamente segundo o grau a que tenciona elevá-la, e também conforme a impureza e imperfeição da alma.” 15
Essa observação de São João da Cruz deve encorajar todos aqueles e aquelas que já experimentaram essas passagens de vias purgativas, as da purificação passiva, que não desanimaram, mas que, ao contrário, querem ir além. Eles estão no caminho certo, desde que não se desesperem a qualquer custo e queiram avançar em sua vida espiritual.
A purificação das potências da alma
“Não direi como seja a intensidade desta purificação, nem os seus graus para mais ou para menos; nem quando se realiza no entendimento, na vontade, ou na memória. Tudo isto explicamos na Noite Escura da Subida do Monte Carmelo.” 16
Pode consumar, se você assim quiser
“Isto é, acaba de consumar perfeitamente comigo o matrimônio espiritual por meio da tua visão beatífica, pois é esta a que a alma pede. E embora seja verdade que, neste sublime estado, ela está tanto mais conformada e satisfeita, quanto maior é a sua transformação no amor, e nada saiba ou acerte a pedir para si, mas quer que tudo seja somente para o Amado, porque a caridade, conforme afirma São Paulo (cf. 1Cor 13, 5), não busca os seus interesses e sim os de Deus, contudo a alma, por viver ainda na esperança, não pode deixar de sentir algum vazio. Por tal motivo, geme embora com suavidade e deleite tanto quanto lhe falta ainda para a perfeita posse da adoção dos filhos de Deus, a qual, uma vez alcançada, realizará a consumação de sua glória, e só então se aquietará seu desejo.” 17
São João da Cruz expressa claramente uma situação “intermediária” na qual a alma se encontra: entre o “já” e o “ainda não”. De fato, ela é como se já estivesse transformada para o seu Amado e não tem mais nada a pedir para si mesma. E, no entanto, ela geme, porque ainda não alcançou a “perfeita posse da adoção dos filhos de Deus”. Esse dilema em que a alma se encontra nos leva de volta ao mesmo pensamento do Apóstolo Paulo:
“A criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo.” (Rm 8, 22-23)
“A minha expectativa e a esperança é de que em nada serei confundido, mas com toda a ousadia, agora como sempre, Cristo será engrandecido no meu corpo, pela vida ou pela morte. Pois para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro.” (Fl 1, 20-21)
A alma vive na esperança: sua glória será consumada e seu desejo será satisfeito
“Como fez com Moisés na pedra para que pudesse contemplar a sua glória sem morrer (Ex 33, 22), sucumbiria a natureza a cada uma dessas labaredas da chama de amor, e morreria, não havendo’ na parte inferior capacidade para suportar tão abrasado e sublime fogo de glória.” 18 A alma foi feita para um “fogo tão grande” porque foi feita para o céu e para a visão beatífica, mas deve ser formada, pouco a pouco, nessa natureza espiritual, tão distante de sua natureza carnal.
A vontade e o desejo são um só com Deus
“Um desejo suave e deleitoso (…) e assim canta o verso; acaba já, se queres. Com efeito, acha-se a vontade, em seu desejo, de tal modo unificada com Deus, que põe toda a sua glória no cumprimento da vontade divina. ‘Vede o que o meu Amado me está dizendo: Levanta-te, apressa-te, amiga minha, pomba minha, formosa minha, e vem. Porque já passou o inverno, já se foram e cessaram de todo as chuvas. Apareceram as flores…’ (Ct 2, 10-14).” 19
Rasgue a tela desse doce encontro
“Esta tela é o obstáculo a tão importante obra; porque é coisa fácil unir-se a Deus, quando são tirados os obstáculos, e rasgadas as telas que impedem a junção entre a alma e Deus. As telas que podem impedir essa junção, e que se hão de romper para efetuá-la e a alma possuir perfeitamente a Deus, podemos dizer que são três: a primeira é temporal, e nela estão compreendidas todas as criaturas; a segunda é natural, compreendendo todas as operações e inclinações puramente naturais; a terceira é sensitiva, e consiste unicamente na união da alma com o corpo, isto é, na vida sensitiva e animal a que se refere São Paulo quando diz: ‘Sabemos que, se esta nossa casa
terrestre for destruída, temos uma habitação de Deus nos céus’ (2Cor 5, 1).” 20
Essa metáfora das “telas carnais e naturais”, que devem ser “rasgadas”, nos faz lembrar das palavras de Jesus à Nicodemos 21. “O que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito.” (Jo 3, 6) Como podemos ver na Chama Viva de Amor, tudo o que prende a alma ao carnal e ao terreno não permite que entre em união contemplativa com o seu Senhor.
A necessidade de romper as telas
“As duas primeiras telas necessariamente hão de estar rompidas para a alma chegar a esta posse de Deus na união, na qual todas as coisas do mundo já estão negadas e renunciadas, e todos os apetites e afetos naturais se acham mortificados, estando já as operações da alma transformadas de naturais em divinas. Tudo isto se foi rompendo na alma, pela ação dos encontros esquivos da chama de amor, quando esquivamente a feria. De fato, com a purificação espiritual já explicada acima, a alma acaba de romper essas duas telas (…).” 22
“Como a alma percebe não lhe faltar mais que rasgar esta frágil tela da vida natural em que se vê enredada, com a sua liberdade presa e impedida, arde em desejo de ser desatada e ver-se com Cristo (cf. FI 1, 23), tendo lástima de que uma vida tão baixa e fraca seja obstáculo a outra tão alta e forte. Por isto, pede que se rompa, dizendo: Ah! rompe a tela deste doce encontro. E como a alma experimenta a fortaleza da outra vida, evidentemente vê a fraqueza desta em que se acha agora, e assim lhe parece ser uma tela finíssima, ou mesmo uma teia de aranha, conforme a chama Davi dizendo: ‘Os nossos anos serão considerados como uma teia de aranha’ (Sl 89, 9).” 23
Os atos espirituais são infundidos por Deus
Esse termo significa que esses não são bens adquiridos por nossos próprios meios e faculdades humanas e naturais, mas dons que Deus concedeu “pela graça” àqueles que Ele desejou. O Espírito Santo então “infunde” Seus dons e graças na alma. Já os atos que a própria alma realiza, São João da Cruz os chama de: “disposições de desejos e afetos sucessivos.” “Daí se infere que a alma já preparada pode fazer atos mais numerosos e intensos em menos tempo, do que outra, não disposta, faria em muito; e, ainda mais, quando a disposição é perfeita, costuma permanecer por muito tempo no ato de amor ou contemplação.” 24
A alma amorosamente inflamada pelo amor é liberada das influências carnais
“Na verdade isto quer a alma enamorada, que não sofre dilações na espera de que se lhe acabe naturalmente a vida, nem de que lhe seja cortada em determinado tempo; porque a força do amor, e a disposição que vê em si, levam-na a querer e pedir que se rompa logo a vida por algum encontro ou ímpeto sobrenatural de amor.
Sabe muito bem como Deus costuma levar antes do tempo aqueles a quem muito ama, aperfeiçoando neles em breve tempo, mediante o Seu amor, o que em todo o decorrer da vida iriam adquirindo com o seu passo ordinário. Assim o exprime a palavra do Sábio: ‘Tendo-se tornado agradável a Deus, foi por Ele amado, e foi transferido do meio dos pecadores entre os quais vivia’.” 25 “Claramente vê que o amor a acomete com essas investidas divinas e gloriosas, à maneira de encontros. Como têm por fim consumá-la, tirando-a da carne, verdadeiramente são encontros mediante os quais o amor penetra sempre mais na alma, endeusando-a em sua íntima substância, e tornando-a divina; e nisto é a alma absorvida, sobre todo ser criado pelo Ser de Deus.
Deus nele age com o fim de desatar a alma do corpo e glorificá-la depressa; e daí lhe nascem asas para dizer: ‘Rompe a tela’.” 26 “O que tu queres que eu peça, peço; o que tu não queres, não quero, nem mesmo o posso, nem sequer me passa pelo pensamento querer. (…) pois, diante de teus olhos minhas petições são mais válidas e estimadas, porque saem de ti; suplico-te, cheia de gozo e sabor no Espírito Santo.” 27 Na próxima estrofe, a alma se regozijará e agradecerá por ter passado por esse processo de purificação, que a preparará para entrar na união da contemplação.
As outras três estrofes do poema Chama Viva de Amor, de São João da Cruz:
II – Segunda estrofe
“Oh! cautério suave!
Oh! regalada chaga!
Oh! mão tão branda! Oh! toque delicado
Que a vida eterna sabe
E paga toda dívida!
Matando, a morte em vida me hás trocado.
III – Terceira estrofe
Oh! lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido,
Que estava escuro e cego,
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto a seu Querido!
IV – Quarta estrofe
Quão pacífico e amoroso
o Senhor desperta em meu peito
Onde secretamente sozinho o Senhor habita,
E em Seu hálito saboroso
De bem e glória repleto,
Quão delicadamente o Senhor faz amor!”
Essas duas meditações sobre a vida da alma, abrasadas pelo fogo do amor divino 28, são um convite para trabalharmos profundamente a nossa vida espiritual com fé, coragem e profunda motivação. Somos lembrados de que a vida espiritual não consiste apenas em prazeres, graças sensíveis e confortos interiores, mas também em motivações, desejos ardentes e rejeição de toda preguiça e quietismo.
Feliz Jubileu na Renovação do Espírito!
Fontes:
1 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 17.
2 Ibidem, Canção I, 18.
3 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 19.
4 Ibidem.
5 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 19.
6 Ibidem, Canção I, 20.
7 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 20.
8 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 21.
9 Ibidem.
10 Ibidem, 22.
11 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 22.
12 Ibidem.
13 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 23.
14 Ibidem.
15 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 24.
16 Ibidem, Canção I, 25.
Os leitores que desejarem explorar esses temas de purificação com mais
profundidade devem, como recomenda São João da Cruz, consultar dois
outros escritos, juntamente com este texto: “A Noite Escura” e “A Subida do
Monte Carmelo”(cap. n. 8).
17 Cf. São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 27.
18 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 27.
19 Ibidem, Canção I, 28.
20 Cf. São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 29.
21 Cf. Introdução de junho.
22 Cf. São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 31.
23 Ibidem, Canção I, 32.
24 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 33.
25 Ibidem, Canção I, 34.
26 São João da Cruz, Chama Viva de Amor, Canção I, 35.
27 Ibidem, Canção I, 36.
28 Cf. Meses de Junho e Julho 2025.