O Espírito Santo nos faz amar a Palavra de Deus

O céu foi feito com a Palavra do Senhor, e Seu exército com o sopro de Sua boca.” (Sl 33(32), 6) Aqueles que fazem a experiência do batismo no Espírito Santo constatam quase sempre que o seu amor pela Palavra de Deus é um dos frutos dessa experiência. Este fato não é surpreendente, dada a íntima ligação entre a Sagrada Escritura e o Espírito Santo. Vale a pena meditar estas linhas durante este mês de setembro, consagrado à Palavra de Deus, para que sejamos renovados pelo Espírito Santo em nossa maneira de escutar e acolher esta Palavra. São Jerônimo, cuja festa se celebra no dia 30 de setembro, disse esta expressão, que se tornou um lema: “Ignorar as Escrituras é ignorar Cristo” 1. Foi São Jerônimo (347 420) que traduziu a Bíblia do hebraico para o latim, durante o tempo em que viveu em Belém.

Com efeito, como cristãos, não podemos ter uma compreensão autêntica da Revelação cristã sem a ação do Espírito Santo. Deus revela-Se e comunica-Se sempre na relação e a partir da relação entre o Filho e o Espírito Santo. Neste sentido, Santo Irineu de Lião fala das “duas mãos do Pai”, uma que representa o Filho e a outra, que representa o Espírito Santo 2. São Gregório Magno sublinha sugestivamente a ação do Espírito Santo na formação e na interpretação da Bíblia: “Ele mesmo criou as Palavras dos Testamentos Sagrados, Ele mesmo as desvendou.” 3

Podemos dizer que é pelo Verbo e pelo Espírito Santo que a Sagrada Escritura se abre à nossa compreensão. Da mesma forma, só podemos compreender-nos a nós próprios acolhendo o Verbo e sendo dóceis à ação do Espírito Santo em nossas vidas. “A Palavra de Deus impele-nos a mudar o nosso conceito de realismo: realista é quem reconhece o fundamento de tudo no Verbo de Deus.” 4 O autor da Carta aos Hebreus reúne no Filho, Verbo de Deus, a totalidade da Palavra divina revelada até então: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É Ele o resplendor de Sua glória e a expressão do Seu ser; sustenta o universo com o poder de Sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-Se nas alturas à direita da Majestade, tão superior aos anjos quanto o nome que herdou excede o deles.” (Hb 1,1-4)

Continuemos a inspirar-nos e a edificar-nos na nossa fé com as palavras luminosas do Papa Bento XVI: “O Logos existe realmente desde sempre, e desde sempre Ele mesmo é Deus. Por conseguinte, nunca houve em Deus um tempo em que não existisse o Logos. O Verbo preexiste à criação… Por isso o Verbo, que desde o princípio está junto de Deus e é Deus, revela-nos o próprio Deus no diálogo de amor entre as Pessoas divinas e convida-nos a participar nele”. 5 “O Senhor compendiou a Sua Palavra, abreviou-a (Is 10, 23; Rm 9, 28)”. 6 “O mesmo Filho é a Palavra, o Logos; a Palavra eterna fez-se pequena – tão pequena a ponto de caber numa manjedoura. Fez-se menino, para que a Palavra possa ser compreendida por nós.” 7 Para os fiéis, a expressão “Palavra de Deus” pode significar muitas realidades diferentes. “É preciso reconhecer que a própria criação, o ‘liber naturae’, constitui também essencialmente parte desta sinfonia a diversas vozes na qual Se exprime o único Verbo”. 8

Na nossa fé católica, a Palavra de Deus é uma pessoa: Jesus Cristo, o Filho eterno do Pai, o Verbo feito judeu. Em certa medida, podemos dizer que o “coração” da Sagrada Escritura é o Coração de Cristo. Foi o Espírito Santo que inspirou os redatores da Sagrada Escritura. Por meio deles, a Palavra de Deus é expressa para nós em palavras humanas, graças à ação e à inspiração do Espírito Santo. É por isso que não podemos compreender as Escrituras sem o Espírito Santo que as inspirou. É esse mesmo Espírito que falou por meio dos profetas da primeira Aliança e que sustenta e inspira a Igreja em sua tarefa de anunciar a Palavra de Deus pela pregação dos apóstolos.

A Palavra de Deus é, de fato, aquela que é pregada pelos apóstolos, obedientes ao mandamento de Cristo Ressuscitado: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura.” (Mc 16, 15) É através da Sagrada Escritura que descobrimos a história da salvação e, em particular, a vida de Jesus, pela iluminação e a presença do Espírito Santo. E é o mesmo Espírito Santo que ensina todas as coisas aos discípulos e que lhes lembra tudo o que Cristo disse (cf. Jo 14, 26). Sem a ação eficaz do “Espírito da verdade” (cf. Jo 14, 16), não podemos compreender as Palavras do Senhor. Como nos lembra Santo Irineu: “Aqueles que não participam do Espírito não recebem do peito da Sua mãe [a Igreja] o alimento da vida; nada recebem da fonte mais pura que brota do corpo de Cristo”. 9 Assim como a Eucaristia, o Corpo de Cristo, vem a nós através da Igreja, assim também o Corpo das Escrituras, vem a nós através da ação do Espírito Santo e por meio da Igreja. “A Igreja está fundamentada na Palavra de Deus; ela nasce dela e vive por ela.” 10 Devemos agradecer regularmente ao Senhor por podermos, nos nossos dias, ter acesso as Sagradas Escrituras com tanta facilidade, por meio de edições e traduções em nossa língua materna! Ao mesmo tempo, devemos nos lembrar de que nossa fé cristã não é uma “religião do Livro”, mas uma religião da Palavra de Deus.

A Palavra de Deus é “viva, permanente e penetrante” (cf. Hb 4, 12). As Sagradas Escrituras da Primeira e da Nova Aliança chegam hoje até nós por meio da Tradição viva da Igreja. É essa Escritura que o Espírito faz-nos desejar, buscar, estudar, rezar e meditar como Palavra de Deus. É essa Escritura que, no mesmo Espírito, falou aos nossos Pais na fé e a todos os Santos. Sejamos gratos a Deus e à Sua Igreja pela Divina Liturgia, que nos oferece todos os dias esse pão da Palavra! Recebamo-lo com gratidão e na presença do Espírito que sempre acompanha essa Palavra. “Sabedoria, estejamos atentos!” como anuncia o diácono na liturgia oriental, chamando a atenção consciente dos fiéis antes de cantar o Evangelho. “Mandai o vosso Espírito Santo Paráclito às nossas almas e fazei nos compreender as Escrituras por Ele inspiradas; e concedei-me interpretá-las de maneira digna, para que os fiéis aqui reunidos delas tirem proveito.” 11 A escuta diária da Palavra de Deus no Espírito nos leva a amar e desejar viver as exigências desta Lei “escrita em nossos corações” (cf. Rm 2, 15). “Num mundo que frequentemente sente Deus como supérfluo ou alheio, confessamos como Pedro que só Ele tem ‘palavras de vida eterna’ (Jo 6, 68). Não existe prioridade maior do que esta: reabrir ao homem atual o acesso a Deus, a Deus que fala e nos comunica o Seu amor para que tenhamos vida em abundância (cf. Jo 10, 10).” 12 Na nossa relação pessoal com as Sagradas Escrituras, ao acolhê-la pela liturgia, na nossa Lectio Divina pessoal, na formação recebida, a Bíblia permanece, não como uma Palavra do passado, mas como uma Palavra viva e atual. São Paulo, assim como o autor da Carta aos Hebreus, definem a Palavra de Deus como uma espada de dois gumes.

É por isso que a tradição iconográfica muitas vezes retrata o Apóstolo munido dessa espada. “Tomai o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus.” (Ef 6, 17) “Pois a Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à Sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos Daquele a quem devemos prestar contas.” (Hb 4,12-13) Por fim, antes de transmitir e anunciar essa Palavra, devemos antes de tudo, permitir que sejamos “trabalhados” por ela. Hoje, podemos ver como uma palavra humana dada a outra pessoa pode ter tão pouco valor. A Palavra dada por Deus, por outro lado, O compromete totalmente. É por isso que é tão importante conhecer a Palavra de Deus para aprofundar nossa relação e nosso compromisso com Ele. Todo o discípulo e amigo do Senhor tem o dever de estudar seriamente as Sagradas Escrituras, e não pode se contentar em abrir sua Bíblia Sagrada de vez em quando, de forma distraída. “Vós perscrutais as Escrituras, porque julgais ter Nelas a vida eterna; ora, são Elas que dão testemunho de Mim; vós, porém, não quereis vir a Mim para terdes a vida.” (Jo 5, 39-40) Ao construir nossas vidas sobre essa Palavra, construímos nossa casa sobre a rocha (cf. Mt 7:24). Assim, com o salmista, dizemos a Deus: “Tu és meu abrigo e meu escudo, eu espero por Tua Palavra” (Sl 119(118), 114) e, com São Pedro, quando a maioria dos discípulos “se retirou”, confessamos: “Senhor a quem iremos? Tens Palavras de vida eterna” (Jo 6, 68). “Na Igreja há um Pentecostes também hoje isto é que ela fala em muitas línguas e isto não só no sentido exterior do estar representadas nela todas as grandes línguas do mundo, mas ainda mais em sentido mais profundo: nela estão representados os numerosos modos da experiência de Deus e do mundo, a riqueza das culturas, e só assim sobressai a vastidão da existência humana e, a partir dela, a vastidão da Palavra de Deus.” 13 O Papa Francisco declarou que o terceiro domingo de janeiro é o “Domingo da Palavra de Deus”. É claro que todos os domingos do ano são consagrados à Palavra, e até mesmo todos os dias do ano! Mas se o Papa quis marcar esse domingo com uma consciência particular, certamente é porque hoje o “direito de Deus” deve (também) ser defendido e a consciência das pessoas deve ser despertada! É assim que o Papa Francisco se expressa: “A Palavra de Deus, que sara e levanta, não se
destina apenas aos justos de Israel, mas a todos; quer alcançar os que estão longe, curar os doentes, salvar os pecadores, reunir as ovelhas perdidas e encorajar a quantos têm o coração cansado e oprimido. Em suma, Jesus ultrapassa os confins para nos dizer que a misericórdia de Deus é para todos (…) Não nos aconteça professar um Deus de coração largo e ser uma Igreja de coração estreito.” 14

O direito de Deus em nossas vidas é que, de boa vontade, abramos espaço para Ele, espaço para que o Espírito Santo ilumine e deposite em nós, a Sua Palavra! Como o Papa Francisco deixou claro: “Este é o convite de Jesus: Deus aproximou-Se de ti, por isso dá-te conta da Sua presença, dá espaço à Sua Palavra e mudarás a perspectiva da tua vida. Por outras palavras: coloca a tua vida sob a Palavra de Deus. Este é o caminho que nos indica a Igreja: todos, mesmo os Pastores da Igreja, estamos sob a autoridade da Palavra de Deus; não sob os nossos gostos, as nossas tendências ou preferências, mas unicamente sob a Palavra de Deus que nos molda, converte, pede para permanecermos unidos na única Igreja de Cristo. Então, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: A minha vida, que direção toma; donde tira a orientação? Das numerosas palavras que escuto, das ideologias ou da Palavra de Deus que me guia e purifica? E em mim, quais são os aspectos que exigem mudança e conversão?” 15

 

FONTES: 

1 São Jerônimo, Prólogo ao comentário sobre o Profeta Isaías.

2 Cf. Santo Irineu de Lião, Adversus haereses, IV, 7, 4.

3 São Gregório Magno, Homiliae in Ezechielem, I, VII, 17, citado pelo Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 16.

4 Cf. Papa Bento XVI, Homilia durante a Hora Tércia no início da I Congregação Geral do Sínodo dos Bispos, 6 de outubro de 2008, citado pelo Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 10. 412

5 Papa Bento XVI, Verbum Domini, Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, 30 de setembro de 2010, n. 6.

6 Ibid., n. 12.

7 Papa Bento XVI, Homilia durante a Missa da Natividade do Senhor, 24 de dezembro de 2006.

8 Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 7. 413

9 Santo Irineu de Lião, Adversus haereses III, 24, 1, citado pelo Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 16.

10 Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 3. 414

11 Papa Bento XVI, Epiclese, n. 16. 415

12 Papa Bento XVI, Verbum Domini, n. 2. 416

13 Papa Bento XVI, Discurso à Cúria Romana, 22 de dezembro de 2008. 417

14 Papa Francisco, Homilia, III Domingo do Tempo Comum, 22 de janeiro , de 2023.

15 Idem..

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