Coeur a Coeur… face a Face!, De coração a Coração… face a Face!

Escrevo estas linhas, da nossa última fundação no Convento de Santa Helena do Monte Calvário, Mosteiro de Clarissas do século XVI nas muralhas de Évora, em Portugal, onde somos chamados a ser sentinelas da Esperança pela adoração perpétua e pelo anúncio, caminhando como arautos e peregrinos da Esperança nesta bela cidade universitária que será capital da cultura em 2027. Neste nobre convento, tudo ou quase tudo está em ruínas, mas o Santíssimo e esta palavra encontrada na entrada nos animam a cada dia: “A Minha Providência e a tua fé, manterão esta casa de pé!”. Fazemos a experiência de Santo Inácio de Loyola: “Rezar como se tudo dependesse de Deus e trabalhar como se tudo dependesse de nós!”.

Nos primórdios do cristianismo, em tempos de grandes perseguições, surge em pleno século III, o testemunho de Santa Helena (246/48-330). Mulher transpassada pela Cruz de Nosso Senhor, torna-se, mãe do futuro Imperador Constantino, não só responsável pela sua conversão e o início de uma era de paz e esperança para os cristãos perseguidos. Foi a grande divulgadora da Cruz de Cristo, pois aceitou a ciência da cruz na sua própria vida. De família simples e como zeladora de estábulos, não poderia ser aceite como esposa do nobre militar Constâncio Cloro e foi obrigada a separar-se dele, sendo abandonada com seu filho Constantino. Aceitou ver que seu esposo desposou uma nobre em seu lugar, mas nunca desanimou e escolheu sempre a verdadeira nobreza de alma ao permanecer humilde, tornandose assim luminosa e contagiante, com esta insondável ciência da Cruz! A Santa Helena, devemos não apenas a relíquia da Santa Cruz e seus três cravos, mas também a construção das basílicas da Natividade e da Ascensão no Monte das Oliveiras. Segundo a tradição, Helena ao encontrar os três madeiros da cruz, para saber qual seria o verdadeiro, mandou chamar os doentes da cidade.

Diante do primeiro, alguns eram curados, outros não. Helena deduziu que era a cruz do Bom Ladrão; na segunda, nenhum dos doentes eram curados: concluiu era a do mau ladrão; e na terceira todos eram curados, tendo a certeza que era a Cruz de Jesus. Esta data de 3 de maio foi considerada até ao Concílio Vaticano II como a festa da Santa Cruz pois seria o dia em que, segundo a tradição, Santa Helena teria encontrado a verdadeira cruz. Esta Cruz que vence todas as batalhas: “In hoc signo vinces: com estensinal vencerás”. No Monte Cassino, onde São Bento (480-547) viveu, no sec VI, num rochedo e onde recebeu a sua regra de vida “Ora et labora et legere”. “Ore, trabalhe e leia”, podemos contemplar um fresco que parece ser uma profecia para estas Novas Formas de Vida Consagrada com todos os estados de vida, juntos, como peregrinos da Esperança, sob a proteção do manto da Mãe da Igreja! A Comunidade Sementes do Verbo lançou sementes em novas terras, neste mesmo ano em que abrimos este Convento em Évora, para além de fundarmos a nossa missão na Venezuela, em Maputo, em Moçambique, no Canadá, em Montreal, o Bom Deus nos conduziu a fundar uma nova presença na Itália, no Convento de São Bernardino de Siena (1380-1444), a dois passos de Assis e de Siena. Maior presente para celebrarmos o nosso jubileu comunitário não podia haver, fazendonos adentrar ainda mais, na grande escola franciscana, do “Vai e reconstroi a Minha Igreja!”.

Bem perto, aos pés do Monte Alverne onde Francisco (1181/2-1226) sofreu as maiores tentações de desespero (até pensar em suicídio…), mas também onde recebeu o maior sinal de consolo e de união a Deus, os estigmas do Amor, confiei a nossa comunidade nesta sua escuta contemplativa. No coração do rochedo, um altar dedicado à escuta e ao diálogo, onde o Jesus aparecia a Francisco para falar-lhe, coeur a coeur, de coração a coração… e para se revelar face a face, numa intimidade indelével. No séc. XIV, Santa Catarina de Sena (1347-1380), na sua cela durante os seus anos santos de intimidade viveu no meio de tantas penitências e jejuns, esse júbilo de escutar e de ver o seu Amado, coeur a coeur e face a face! Surgem assim celeiros de almas de fogo porque incendiadas pelo Amor e que abrasaram o mundo, dilacerado das suas épocas, como peregrinos da Esperança.

 

Coeur a Coeur… face a Face!

Se nos deixarmos transpassar pelo Coração sempre aberto de Jesus, do qual só jorram Amor, Sangue e Água, não somente seremos revirginizados, divinizados, como também seremos consolados e saciados nas dores e angústias existenciais que carregamos, sobretudo a do sentido das nossas existências. Só Deus sabe por quê e para quê nos criou e qual a missão única que quer confiar a cada um de nós. Mas quantas pessoas passam ao lado do seu próprio mistério, sombrando num labirinto existencial sem nunca encontrarem a fonte… a verdadeira Fonte do Seu Coração sempre aberto. Viver esse coeur a coeur é para cada um, uma necessidade vital e que o exercício regular da Lectio Divina exercita para a escuta permanente e a cada instante desse murmúrio interior como uma fonte que sussura no mais íntimo de nós: “Vem para O Pai”! (cf. Jo 16, 28 e Jo 17,11). Papa Francisco nos ensina que “ouvir, saborear e honrar ao Senhor pertence ao coração. Só o coração é capaz de colocar as outras faculdades e paixões e toda a nossa pessoa numa atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor” 1.

E esta atitude amorosa nos liberta de toda a tentação de controlar, organizar e engaiolar a vida espiritual pois nunca devemos “esquecer a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoaa- pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante da amizade que Ele oferece e do sentido último que Ele dá à vida.” 2 Quem vive essa relação de intimidade de Coração a Coração, aberto e obediente aos mínimos influxos da graça, resplandece nesse face a face com a Trindade e com a Humanidade, não se deixando perturbar nem afligir. No Capítulo II do Livro da Vida, Santa Teresa de Ávila (1515-1582) confidencia a propósito do alvoroço que gerou a fundação do Convento São José, em toda a cidade e na sua própria Comunidade: “Aflita como muitas razões para me inquietar, disse-me o Senhor: ‘Que temes? Não sabes que Sou poderoso? Cumprirei o que te prometi!’ Efetivamente tudo depois se realizou, ficando eu com tal fortaleza, que novamente me animaria a outros empreendimentos para O servir, ainda que me custasse maiores sofrimentos, e que eu me expusesse a novos padecimentos. Isso ocorreu tantas vezes que eu não poderia contar”. As experiências ao longo da história da Igreja com a virtude da Esperança são tão fortes que, em todas as épocas, podemos constatar como homens e mulheres foram transformados e transformaram a sociedade pois se tornaram autênticos peregrinos da Esperança.

Quem é contagiado por este fogo, não pára, mas alastra esta vida nova… como um incêndio contagiante. Como grande presente neste fim de Sínodo sobre a Sinodalidade, o Papa Francisco nos presenteia com a extraordinária Encíclica Dilexit Nos, sobre o Amor Humano e Divino do Coração de Jesus, faz-nos sair de todo o devocionismo, moralismo e piedades superficiais para adentrarmos na transformante Escola de Cristo, dos Santos e dos Carismas que vivem do Seu Sagrado Coração e por isso da Esperança. “O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro. N’Ele tornamo-nos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e feliz, e de construir neste mundo, o Reino de amor e de justiça. O nosso coração unido ao de Cristo é capaz deste milagre social.” 3 E o Papa Francisco nos adverte: “Ninguém deve pensar que esta devoção nos possa separar ou distanciar de Jesus Cristo e do Seu amor. De modo espontâneo e direto, ela dirige-nos a Ele e só a Ele, que nos chama a uma amizade valiosa, feita de diálogo, afeto, confiança e adoração. Este Cristo com o Seu coração trespassado e ardente é o mesmo Cristo que por amor nasceu em Belém, percorreu a Galileia curando, acariciando, derramando misericórdia, e amou-nos até ao fim, estendendo os braços na cruz. Por fim, é o mesmo que ressuscitou e vive gloriosamente no meio de nós.” 4

As razões do coração e a ciência da Cruz

Santa Teresinha do Menino Jesus (1873- 1897) faznos entrar na Ciência do Amor, pois prescrutou o Coração Aberto de Jesus na Cruz:
“Quando tinha quinze anos, encontrou uma maneira de resumir a sua relação com Jesus: ‘Aquele cujo coração batia em uníssono com o meu’. Dois anos mais tarde, quando lhe falavam de um Coração coroado de espinhos, acrescentou numa carta: ‘Sabes, eu não vejo o Sagrado Coração como toda a gente, penso que o coração do meu Esposo é só meu como o meu é só d’Ele e então falo-Lhe na solidão desta deliciosa intimidade esperando contemplá-l’O um dia face a face’.” 5 Santa Teresinha vai ainda mais longe na sua audácia amorosa e plenamente confiante:

“Num poema, ela exprimiu o sentido da sua devoção, feita mais de amizade e confiança do que de segurança nos seus próprios sacrifícios: ‘Preciso de um coração ardente de ternura, que me dê a sua força sem reserva, que ame tudo em mim, mesmo a minha fraqueza…, que nunca me abandone de noite nem de dia. […] Preciso de um Deus que se revista da mesma natureza que se torne meu irmão e possa sofrer! […] Ah! bem sei que todas as nossas justiças não têm a teus olhos nenhum valor […]. E eu escolho para meu purgatório o teu Amor ardente, ó Coração do meu Deus” 6.

E o Papa Francisco conclui:
“Talvez o texto mais relevante para compreender o significado da sua devoção ao Coração de Cristo seja a carta que escreveu, três meses antes de falecer, ao seu amigo Maurice Bellière: ‘Quando vejo Madalena avançar na presença dos numerosos convidados, banhar com as suas lágrimas os pés do Mestre adorado que toca pela primeira vez, sinto que o coração dela compreendeu os abismos de amor e de misericórdia do Coração de Jesus, e que, por muito pecadora que ela seja, este Coração de amor está não só disposto a perdoar-lhe, mas ainda a prodigalizar-lhe os benefícios da sua intimidade divina, a elevá-la até aos mais altos cumes da contemplação. Ah! meu querido Irmãozinho, desde que me foi dado compreender também o amor do Coração de Jesus, confesso que ele afastou do meu coração todo o temor. A lembrança das minhas faltas humilha-me, leva-me a nunca me apoiar na minha força que é só fraqueza, mas esta lembrança fala-me ainda mais de misericórdia e de amor’.” 7
Edith Stein (1891-1942), é profundamente iluminada na sua fé judaica e se converte ao cristianismo ao ler o livro da Vida de Santa Teresa de Ávila, numa noite. Sua última obra foi a Ciência da Cruz, um estudo que fez com São João da Cruz. E nas vésperas de ser deportada para o campo de concentração e de ser assassinada nas câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau, escreve: “Querida Madre, permita-me que me ofereça ao Sagrado Coração de Jesus como vítima propiciatória pela paz verdadeira: que o poder do Anti Cristo seja derrubado e se possível sem uma nova guerra mundial, e que possa ser instaurada uma nova ordem das coisas… Sei que nada sou, mas Jesus o quer, e seguramente nestes dias chamará muitos outros para isto.” 8

Seu nome religioso, Benedicta da Cruz, é uma profecia de tudo o que vai experimentar do mistério da Cruz, não apenas de forma espiritual e mística na sua busca incessante pela Verdade, mas concretamente através da sua prisão e morte no campo de concentração: “Uma ‘scientia crucis’ só pode adquirir-se se chegar a experimentar a fundo a cruz. Disto estava convencida desde o primeiro momento e de coração disse: ‘Ave cruz, spes unica’.” 9

Seu corpo desfez-se em holocausto como as vítimas do Antigo Testamento, mas como Esposa do Cordeiro, ela oferece a sua vida pelo seu povo como peregrina da Esperança e vive com Deus para sempre: “Quanto a mim, Deus me livre de me gloriar a não ser na cruz de Cristo.” 10

Enamorar-se e fazer o mundo enamorar-se!

Cada pessoa humana é um universo cheio de capacidade e possibilidades a desenvolver em si para o serviço dos outros. Mesmo suas fragilidades e quedas podem ser convertidas em potencialidades. Quando se enamora de Cristo aprende a transformar limites em possibilidades, não contando mais com suas forças mas impulsionada pela alavanca da Esperança, contando com a graça de Deus e a ajuda da comunidade. “A missão é uma questão de amor, e o maior risco da missão é que se façam e digam muitas coisas mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo que abraça e salva… A missão requer missionários apaixonados, que se deixam cativar por Cristo e que inevitavelmente transmitam esse amor que mudou suas vidas.” 11 A missão requer almas contemplativas e missionárias
reconciliadas pois “o perdão é a expressão fundamental do amor e a base de qualquer cura pessoal e relacional: é a coluna vertebral do homem espiritual” 12 “Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece
sempre de novo a quem quer amar. Só o Seu amor tornará possível uma nova humanidade. Peço ao Senhor Jesus Cristo que do Seu Coração santo brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligimos, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, e nos impulsionar a fim de aprendermos a caminhar juntos, harmonizando todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto.” 13

São Francisco falava ardentemente com o Senhor e se preocupava muito por causa dos frades que se afastavam da perfeição: “Porque, na medida do zelo que tinha continuamente pela perfeição da religião, tinha que ficar triste se alguma vez ouvisse ou visse nela algo de imperfeito. Quando começou a perceber que alguns frades davam mau exemplo na religião e que os frades já começavam a baixar do mais alto cume de sua profissão, tomado no íntimo do coração por grande dor (cf. Gn 6,6), uma vez, em oração, disse ao Senhor: ‘Senhor, recomendo-vos a família que me deste!’ Imediatamente disse-lhe o Senhor: ‘Ó homenzinho simples e ignorante, dize-me por que te entristeces tanto, quando um frade sai da religião ou quando os frades não andam pelo caminho que te mostrei (cf. 1Rs 8,36)? Dize-me, também, quem plantou esta religião de frades? Quem faz o homem converter-se à penitência? Quem dá força de perseverar nela? Não sou Eu? Não te escolhi para guiar minha família porque és um homem instruído e eloquente, pois quero que nem tu nem aqueles que serão verdadeiros frades e verdadeiros observantes da regra que te dei andem pelo caminho da ciência e da eloquência. Mas escolhi a ti, simples e ignorante, para que saibas, tanto tu quanto eles, que velarei sobre meu rebanho; que te coloquei como sinal (cf. Jr 1,12) para eles, a fim de que as obras que realizo em ti, eles as realizem em si mesmos. Pois aqueles que andam pelo caminho que te mostrei (cf. 1Rs 8,36), possuem a mim e possuirão com mais abundância (cf. Jo 10,10); mas os que quiserem andar por outro caminho, também aquilo que pensam ter serlhes- á tomado (cf. Mt 25,29). Por isso, eu te digo que, para o futuro, não te aflijas tanto; mas faze o que deves fazer, realiza o que deves realizar, porque plantei a religião dos frades no amor eterno (cf. Jr 31,3). pois saibas que a amo tanto que, se um frade, voltando ao vômito (cf. 2Pd 2,22; Pr 26,11), morrer fora da religião, enviarei outro à religião para que receba a coroa em seu lugar e, se esse não tiver nascido (cf. Mt 24,26), farei que ele nasça. E para que saibas que amo espontaneamente a vida e a religião dos frades, suponhamos que em toda a religião não fiquem senão três frades, ela será sempre a minha religião e nunca a abandonarei 14”.
Que a Comunidade Sementes do Verbo e todos os que possamos alcançar pela oração e pela missão cheguem aos cumes deste enamoramento transformante!

 

Irmã Maria Sarah
Moderadora Geral da
Comunidade Sementes do Verbo

1 Papa Francisco, Encíclica Dilexit Nos, sobre o Amor Humano e Divino do Coração de Jesus, n. 27, 24 de outubro de 2024.

2 Ibidem, n. 88.

3 Papa Francisco, Encíclica Dilexit Nos, sobre o Amor Humano e Divino do Coração de Jesus, n. 28, 24 de outubro de 2024.

4Ibidem, n. 51.

5 Papa Francisco, idem, n. 134, citando as Cartas 67 e 122 de Sta Teresinha.

6 Ibidem, n. 135, citando a Poesia 23 ao Sagrado Coração de Sta Teresinha.

7 Papa Francisco, idem, n. 136, citando a Cartas 132 de Sta Teresinha.

8 Stein, Edith, Obras Completas I, C 589, p. 1307.

9 Ibidem, C 653, p. 1383.

10 São João Paulo II, Homilia da Canonização de Edith Stein, In Revista de Espiritualidade, 26 (1999), p. 154

11 Encíclica Dilexit Nos, sobre o Amor Humano e Divino do Coração de Jesus, n. 208-209, 24 de outubro de 2024.

12 Hobson, George, La guérison intérieur, A Cura interior, Éditions Théodote, p. 25.

13 Papa Francisco, idem, n. 219-220.

14 São Francisco, Fontes Franciscanas, Cap. 81, 1-11.

 

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