UNIDADE DO CORPO E ALMA

Por Pe. João Gabriel SDV

O salmista suplica a ação de Deus para ensiná-lo e para unificá-lo e, como resposta, demonstra a sua disposição interior para caminhar conforme o ensinamento da verdade e para temer o nome de Deus. A seu exemplo, devemos frequentemente nos colocar estas questões (dentre outras), que nos instigam a examinar como estão a qualidade e a condução da nossa vida:

i) Como estou me deixando ensinar por Deus?;

ii) O meu coração está unificado, ou seja, inteiro na minha relação com Deus?

Nos dias atuais, podem parecer muito distantes ou sem muita relevância palavras como “interioridade”, “recolhimento”, “silêncio”, “exame de consciência”, “contemplação” e “revisão de vida”. Ainda que se possa falar de alguma dessas realidades em contextos diversos, queremos aqui ressaltar que são elementos importantíssimos da vida cristã — e, acreditem, a nossa alma tem sede disso! Todavia, esse mistério da vida interior não serevela facilmente em meio às agitações e perturbações cotidianas, mas suplica por um tempo propício para ser devidamente trabalhado, que designamos como “retiro espiritual”.

Talvez você se pergunte se um retiro espiritual é algo realmente necessário ou se não é uma coisa para adolescentes e jovens. No entanto, após diversos retiros que a Comunidade Sementes do Verbo tem promovido ao longo desses anos, muitas pessoas testemunharam que, antes de vivenciá-lo, tinham apenas uma ideia vaga sobre o que seria. Mas diante da experiência real e profunda, tudo que é vago se dissipa e a sede profunda da alma é saciada.

É imprescindível tomar uma distância dos afazeres cotidianos para perceber como, em meio às responsabilidades da vida humana e também na Igreja, “estamos tão pressionados por tarefas a serem executadas, problemas a serem resolvidos, desafios a serem superados, que corremos o risco de perder de vista, ou deixar para trás […] a nossa relação pessoal com Deus e com Cristo”1.

O Cardeal Cantalamessa nos recorda que “acima de tudo, sabemos por experiência que um relacionamento pessoal genuíno com Deus é a primeira condição para enfrentar todas as situações e problemas que surgem, sem perder a paz e a paciência”2. Eis a urgência de mergulharmos nesse mistério da vida interior! Santo Agostinho lançou um apelo que perpassa os séculos sem perder a atualidade: “Retorne a si mesmo. A verdade habita no homem interior”3.

Em um discurso para o povo, ele exortava com maior insistência: “Entrai de novo em vosso coração! Onde quereis ir para longe de vós? Ao ir longe, vos perdereis. Por que vos dirigis a estradas desertas? Retornai do vosso deambular que vos levastes para fora da estrada; voltai para o Senhor. Ele está pronto. Em primeiro lugar, retornai ao vosso coração, vós que vos tornastes estranhos a vós mesmos, vagando lá fora: não vos conheceis a vós mesmos, e procurais aquele que vos criou! Voltai, retornai ao coração, desprendei-vos do vosso corpo… Retornai ao coração: ali examinai o que se pode perceber de Deus, porque ali se encontra a imagem de Deus; na interioridade do homem mora Cristo, na vossa interioridade vos renovais segundo a imagem de Deus“4.

Mulher Orando, c.1660 · Rembrandt van Rijn Mauritshuis, The Hague, The Netherlands / Bridgeman Images

Este valor da interioridade está em crise, como nos alerta o Cardeal Cantalamessa. É um grande desafio conseguir viver esse recolhimento e retorno a si mesmo no dia a dia. São inúmeras as situações dispersivas que nos lançam para “fora” de nós mesmos. Entre tantas causas dessa “crise da interioridade”, uma está associada a nossa própria natureza: “A nossa ‘composição’, isto é, o nosso ser feito de carne e espírito, nos faz como um plano inclinado, mas inclinado para o exterior, o visível e o múltiplo. […] Estamos perpetuamente ‘saindo’ por aquelas cinco portas ou janelas que são nossos sentidos” 5.

Corpo e alma! Porquê falar da unidade destes dois elementos? Simplesmente porque Deus nos fez assim e porque o fato de compreendermos a nossa constituição, ou seja, a estrutura do nosso ser, nos ajuda a nos conhecermos mais profundamente para, deste modo, desenvolvermos a nossa vida com maior maturidade e harmonia.

O catecismo nos ensina que a pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual 6. Embora possamos identificar pensamentos, ao longo da história, que sublinharam uma dimensão em detrimento da outra, gerando uma dualidade conflituosa e, por vezes, até irreconciliável, o cristão deve confessar com alegria que o homem na sua totalidade é querido por Deus 7.

Se nos perguntarmos, de forma contemplativa e não somente como especulação vaga, “o que é o homem?, iremos nos deslumbrar ao descobrir que, do ponto de vista teológico, conforme o ensinamento da Igreja, o homem é “uma ponte entre o mundo do espírito e o da matéria”. Isso ocorre porque “a alma do homem é espírito, de natureza similar ao anjo; o seu corpo é matéria, similar aos animais. Porém, o homem não é nem anjo nem animal; é um ser à parte por direito próprio, um ser com um pé no tempo e outro na eternidade 8.

A Igreja nos ensina ainda que “o espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única natureza” 9 e que “cada alma aspiritual é diretamente criada por Deus — não é ‘produzida’ pelos pais — e é imortal” 10. Esses dados de fé sobre a nossa existência poderiam ser, para cada um de nós, um ponto de partida extraordinário para meditação e contemplação em um retiro.

Ao longo desta reflexão simples e breve, podemos perceber como um retiro espiritual é um meio necessário e frutuoso para tomarmos consciência da unidade da nossa existência e da importância do cultivo de uma vida interior, com recolhimento em Deus, para podermos desempenhar as necessárias responsabilidades temporais, sem perder de vista a aspiração de viver o “coram Deo”, ou seja, “na presença de Deus”.

Retomando a súplica do salmista, aprendamos a nos deixar ensinar por Deus, pois Ele nos criou em uma unidade e, portanto, devemos aprender a caminhar nessa unidade interior, passando a identificar e harmonizar as necessidades reais e legítimas do corpo (como alimentação, cuidado da saúde, lazer, relações e responsabilidades sociais, dentre tantas outras), sem descuidar da alma, que também precisa de alimento e de cuidados espirituais, como a oração, a Palavra de Deus, a vida sacramental, tempos de recolhimento e de silêncio.

Se até esse momento você ainda sente uma resistência interior em admitir a necessidade pessoal de fazer um retiro espiritual ou ainda, como é muito comum, se estiver convencido de que esta experiência serve para uma lista de pessoas que você conhece e que você tem certeza de que “realmente estão precisando”, então examine com atenção essa exortação de Santo Anselmo e busque, o quanto antes, a oportunidade de viver esse encontro pessoal e genuíno com Deus:

Vamos, coragem, pobre homem! Foge um pouco de
tuas ocupações. Esconde-te um instante do tumulto de teus
pensamentos. Põe de parte os cuidados que te absorvem e
livra-te das preocupações que te afligem. Dá um pouco de
tempo a Deus e repousa nele. Entra no íntimo de tua alma,
afasta tudo de ti, exceto Deus ou o que possa ajudar-te a
procurá-lo; fecha a porta e põe-te à sua procura.
” 11

 
NOTAS
1 Cardeal Raniero Cantalamessa. Primeira Pregação do Advento de 2018 para a cúria Romana. Vaticano, 07 de dezembro de 2018.
2 Ibidem.
3 Santo Agostinho, A Verdadeira Religião, VI, 39, 72.
4 Idem, Comentários a São João, Livro I, Homilia 18, 10.
5 Cardeal Raniero Cantalamessa. Segunda Pregação da Quaresma de 2019 para a cúria Romana. Vaticano, 22 de março de 2019.
6 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 362.
7 Cf. Ibidem.
8 Leo J. Trese. A fé explicada. São Paulo: Ed. Quadrante, 1999, p. 40.
9 Catecismo da Igreja Católica, n. 365.
10 Ibidem, n. 366.
11 Santo Anselmo de Cantuária. Proslógion. Seccovii: Ed. Schmitt, 1938, Opera omnia, Livro I, Cap. I, p. 97.

VIDA CONTEMPLATIVA - Série: Pilares do Carisma

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